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IMPROVISO [28]

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  Tantas coisas trago na memória e tão poucas me chegaram pela íris. Ofereci morangos suculentos, recém-colhidos da terra. Em meio à névoa, provaste mais de um pedaço do meu coração. Quando o sumo do fruto pareceu menos doce, cuspiste, abrindo sulcos no chão. Que aspecto tem um quadro pintado ao por do sol? O campo é apenas miragem, emoldurada pelo sonho. Enquanto aviões derramavam venenos sobre a plantação, uma represa, ali perto, estourava. Hoje volto ao campo, entumecido de veneno, lavado pela enchente. Dos morangos sobraram memórias, imagens que não chegaram pela íris. Sou frutificador a procura de sementes. Imagem :  Free-Photos  /  CC0  / imagem alterada

JOVEM E TOLO

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  Eu tinha 20 anos e havia escrito 4 livros. Todos de poemas. Ruins. Mas eu não sabia disso. Dono de uma energia e de uma estupidez que apenas a juventude é capaz de fornecer, eu desejava publicar minhas poesias. Queria ser escritor e morava em uma cidade bem pequena. Eu não sabia, na verdade, como agir. Eu sabia, porém, que precisava fazer alguma coisa, nem que fosse algo mínimo. Assim, certa manhã, fui até a Prefeitura, pedir se havia algum recurso para a publicação dos meus livros. Por ser jovem e tolo, acreditava que alguém iria querer ler meus poemas. Por ser jovem e tolo, acreditava que alguém iria me ajudar a publicar meus livros. Fui informado, então, de que havia, de fato, um projeto de uma antologia poética em andamento, organizado pelo Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas (IHGGV). E com recurso público. Hoje percebo o quanto aquele “encontro” foi inusitado. Menino raquítico que eu era, introvertido, não sei o que me deu na cabeça para, em uma manhã qualquer, le

IMPROVISO [27]

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  Já entendi que sou um imbecil e você é sensacional — por favor, vá embora e me deixe em paz. Já entendi que sou um imbecil e, sendo um imbecil, serei sempre um imbecil. Agradeço por tentar. Obrigado, é sério: você é incrível. Já entendi que sou um imbecil — meu Deus, por que você se demora? Seu tempo é precioso e minhas lágrimas não enchem um copo, que dirá uma caixa d’água. O mar tem seus porquês — eu não tenho. Já entendi que sou um imbecil, a esmo, a pedir esmolas, a esperar atenção — e até a conseguir alguma. Devo me curvar? Pois não... Você é a correção em pessoa. Tento ser, mas não consigo. Interessante, não é? Você é genial e eu sou um imbecil. Não obstante, entretanto, apesar de, — e obviamente, eu quero apenas ficar aqui, sozinho, em silêncio, observando a chuva através da janela. Imagem :  Free-Photos  /  CC0  / imagem alterada

ONDE FICA O INFERNO

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  Tição do inferno era uma menina preta e pobre, minha colega de quarta série. Estávamos em meados da década de noventa e a chamávamos assim. Porque era preta. Porque era pobre. Porque usava vestidinhos brancos, bem simples, contrastando com sua pele escura. Era como se sua mãe, antecipando os horrores pelos quais a filha passaria, procurasse embranquecer a criança. Como se o branco do vestido pudesse reparar o preto da pele da menina. Como se houvesse algo a ser reparado. Afinal, não se diz até hoje — é um preto de alma branca? Talvez então dissessem: é preta, mas de roupas brancas. Eu também a chamava pelo apelido. Apesar de também ser preto. Apesar de também ser pobre. Mas eu era menos preto. Sofria menos. E o preconceito aumenta na proporção em que mais escura é a pele. Ela era humilhada por quase todos. O apelido era usado, hoje percebo, para fazer ela esquecer de quem ela era. Para fazer ela acreditar que não era ninguém. Se fosse hoje, eu pegaria em meu colo a criança que ela fo

IMPROVISO [26]

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  Viu a roda girando? — Ela esmagou sua cabeça. Ouviu os uivos? — Os lobos estavam atrás de você. A doce ilusão dos pensamentos é inútil perante a sombra da realidade. A Grande Mãe nos escolhe e tritura na máquina cruel do destino. Para onde você vai? Já trilhou os caminhos desertos? Buscou abrigo na escuridão? Dobrou a esquina? O destino sempre nos acha, meu bem. Homens correm em todas as direções. Você irá com eles? Cega como eles? As flechas nos atingem no flanco e nos fazem sangrar. A menos que você se banhe em seu sangue e o compreenda, nenhuma árvore irá crescer. A menos que você converse com sua dor, ela continuará. Sim, os homens correm em todas as direções e buscam refúgio em seus castelos vazios que estão sempre mudando de lugar. Não corra como eles, meu bem. No centro está sua cruz e no centro da cruz seu amor verdadeiro. — E ela se prendeu ao destino enquanto sonhava ser livre. Imagem :  Free-Photos  /  CC0  / imagem alterada

ONDE AS NUVENS SE EMBARALHAM

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O sonho, o amor e a liberdade são nossos maiores desejos. Não por acaso essas coisas são tão odiadas pelo mundo. Sempre que você tiver um sonho, o mundo lhe dirá não. Esse NÃO será tão retumbante quanto maior for a possibilidade de você viver aquilo que sonha. Um sonho ignora protocolos. Quebra contratos. Não lê as letras pequenas. Joga papeis para o alto, abre janelas e deixa entrar um vendaval. Isso é incivilizado. Por isso é tão bom e belo. Uma sociedade que se esforça tanto para parecer bonita jamais compreenderá a beleza da desordem. A vida em sociedade não é para ser vivida. É para ser levada, apenas. Olhe ao seu redor. Perceba que tudo é feito para lhe convencer a ficar onde você já está. A xícara — com cabo anatomicamente perfeito para o encaixe da mão. Parece que foi feita para você, não é? A mesa confortável. O encosto da cadeira. O salário que logo entrará na conta. Dinheiro pouco, mas garantido. O sorriso falso da atendente do banco... Tudo é feito para facilitar a vida, de

IMPROVISO [25]

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  Essa criança te perseguirá como um fantasma, em cada esquina, em cada amor ela irá te acompanhar. E quando estiveres em cima da pedra da eternidade, em algum monte distante, ela também ficará ao teu lado, e se porá a pensar se não deveria te dar um empurrão de lá de cima. Essa criança estará colada aos teus passos, será tua sombra, mesmo em lugares de absoluto meio-dia. Criança maldita, abençoada, que traz às costas todas as tuas mágoas. Será teu juiz, teu menino dos olhos d’ouro, e te rasgará o olhar, com verdades indignas, choros incertos, fúrias e birras. Ao final, talvez tu admitas que ela tinha razão e que todos os erros foram teus. A plateia espera que a pegues em teu colo. Ao invés disso, vocês apenas se olham, de longe... Imagem :  Free-Photos  /  CC0  / imagem alterada

ARCANO XIII

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Morremos muitas vezes. A vida é prenhe de morte. Tanto no sentido físico quanto metafórico, espiritual. A morte física é apenas a última. Pelo menos a última deste plano. Até chegarmos a ela, se vivermos bem, teremos morrido em várias ocasiões. São inúmeros os treinamentos pelos quais passamos até chegar à morte derradeira. Além da finitude do corpo, ocorrem mortes relacionadas ao ciclo da vida, conforme vamos nos desenvolvendo. A criança precisa dar lugar ao jovem. Esse, por sua vez, cede espaço ao adulto. Se tudo der certo, o adulto atingirá a maturidade. Maduros, nos tornamos idosos e, para completar o ciclo, vem a morte do corpo. Com essas mortes vêm outros términos, ligados a desejos abandonados, a ideias que perecem para dar lugar a novas iniciativas. Paixões e amores também morrem. Nem sempre o amor é para toda a vida. Na verdade, quase nunca é. A cada morte é preciso lutar por novos começos. Nas grandes tradições do pensamento, sejam religiosas, agnósticas ou laicas, a morte é

IMPROVISO [24]

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  Árvore-olho Que se busca entre florestas, Que se desnuda entre sestas De índios esquecidos. Pés distantes dos prédios A buscar caminhos refratários, A folhear histórias entre ventos, Causos de antigas benzedeiras. Eu a vi entre meus sonhos, Acariciando o céu dos mortos, Com sua miríade de ramos. Eu a vi em meu quintal, A suportar o doce balanço da infância. Eu a vi em minha sombra, E nossas auroras se fundiram. — Eu não estava lá quando a derrubaram... Suas imagens e mandingas, Suas histórias, suas flores, Caíram como uma mulher que tomba Aos golpes do machado De um marido homicida. Trago comigo suas sementes De mãe e avó. Imagem :  Free-Photos  /  CC0  / imagem alterada

ESSÊNCIA

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  É difícil, para qualquer um, aprender a conviver com seu lado obscuro. Todos nós deveríamos adquirir consciência do mal que carregamos. Infelizmente, gurus modernos e livros de autoajuda barata não se cansam de afirmar que devemos focar apenas em nossos pontos positivos. Outras vertentes do pensamento, como a Psicanálise, focam mais naquilo que nos incomoda e, quer desejemos ou não, faz parte de nós. Não está no outro, no vizinho. No colega de trabalho, no partido político, no sistema. Sendo parte de nossa natureza em termos de espécie, está em todos. Outra linha da psicologia a trabalhar muito bem com esse “eu nefasto” é a Psicologia Analítica. Fundada por Carl Gustav Jung na primeira metade do século passado, ela tem um conceito específico para se referir a isso: sombra. A sombra é, segundo Jung, parte de nossa estrutura psíquica. É aquele aspecto rejeitado de nós mesmos que, muitas vezes, nem ousamos admitir, repleto de egoísmo e violência. A sombra não deseja nada além de satisfa